quinta-feira, 27 de junho de 2013

Palavras de carga

Tenho pensado muito sobre a origem de certas palavras e de como elas se transformam com o tempo. Especialmente sobre as que acabam adquirindo novos significados problemáticos e controversos. A palavra mulatx é uma delas. Pra que não fique nehuma dúvida no ar, deixa eu explicar de onde ela vem.

"Mulatx" é uma derivação da palavra "mula", aquele animal estéril, resultado do cruzamento do jumento com o cavalo. Inúmeros registros etmológicos indicam que foi há mais ou menos 400 anos, ou seja, durante o período escravatista brasileiro, que essa palavra começou a ser usada para se referir aos filhxs de negrxs com brancxs. Não precisa ser nenhum gênio pra notar essa estranha comparação, né? Naquela época, uma pessoa nascida de um cruzamento percebido como no mínimo insólito, assim como no caso do animal, era tida como um híbrido, nem brancx nem pretx e por isso exigia uma classificação à parte. Uma classificação limitante e preconceituosa, mas que infelizmente insiste em se manter no vocabulário do brasileiro com o passar do tempo.

Se uma nova palavra cai no gosto dxs falantes de uma língua ela ganha notoriedade através de seu uso contínuo e com o tempo acaba entrando pro vocabulário oficial da língua. Depois de séculos, ox falantes nativos nem sempre sabem qual a verdadeira origem das palavras que usam, porque realmente não é necessário saber de onde vem uma palavra pra entender o que ela significa em um contexto, ou pra saber empregá-la pra comunicar o que se quer. No entanto é difícil encontrar uma pessoa negra que não se lembre da origem da palavra "mulatx".

Eu detesto ser chamada de mulata. Mas isso sou eu. Tem muito negrx que parece não se incomodar muito com isso. É que muitas vezes vítimas de preconceito se reapropriam das palavras usadas pra feri-las. Na America do Norte, por exemplo, muitos negrxs usam entre si a palavra "nigga", que é uma derivação de "nigger" e que era originalmente uma forma de insultar pessoas de pele escura. Eu até entendo a lógica dxs negrx que não se incomodam com a palavra "mulatx" ou que tentam redefinir para si mesmxs o significado de "nigga". Palavras não são racistas em si. O preconceito vem é dos significados que nós atribuimos a elas. A grande questão é que não faz tanto tempo assim que nós negrxs começamos a ter o direito de contar nossas estórias usando nossas próprias vozes, partindo de nossos pontos de vista. Talvéz por isso essas controvérsias ainda existam, ou seja, alguns de nós se identificam com termos que muitxs outrxs rejeitam e vice-versa.

Eu sou é negra, prefiro que me chamem assim e não de mulata, escurinha, morena ou qualquer outro eufemismo desjeitado. Fico mesmo é muito triste quando percebo que tanta gente parece que fica meio constrangida de me chamar da forma que eu prefiro. Já ouvi muita gente dizer que não sabem mais como se referir a uma pessoa negra, que tem medo de ofender e por aí vai. Eu vejo alguns pontos interessantes nessa estória.

O primeiro deles é meramente uma questão de bom senso. Como já disse antes, nenhuma palavra é racista. O racismo está é na cabeça das pessoas que as usam. Quer ver uma coisa? "Negx" – uma variação da palavra "negrx", pode ser usada tanto pro bem quanto pro mal. Vocês conseguem perceber a diferença entre "O que é que você quer reclamando aqui sua nega preta?" que uma vez ouvi uma vendedora dizer a minhã mãe e o famoso "Ô nega, cê me faz um favor?" que tanto se usa em Salvador, inclusive independentemente da cor da pele de txl "negx" ser realmente preta. Da mesma forma que o tom faz a música, as situações e os contextos fazem o racismo.

O segundo ponto tem a ver com nossa (falta de) empatia para com os problemas dos outros. Pra uma pessoa que não faz parte de nenhum grupo, que é constante alvo de discriminação deve ser difícil entender que quando qualquer minoria decide que não tolera mais certo tipo de tratamento ou classificação e parte pro ataque, não é porque uma única pessoa, sem querer colocou os pés pelas mãos e falou uma besteira sem pensar. Essa atitude defensiva vem de vidas inteiras ouvindo os mesmos comentários, de várias pessoas, em vários momentos.

Se você faz parte desse grupo, deixa eu tentar te explicar como é isso. Imagine aí que você chegou na escola ou no trabalho depois de ter dado um corte radical no cabelo. Como você se sentiria depois de ouvir pela centésima vez no dia "nossa, você cortou o cabelo!"? Ninguém está querendo intencionalmente te encher o saco, mas ninguém nem imagina quantas vezes você já ouviu a mesma frase no mesmo dia. Isso sem contar que vai ter gente que vai achar seu corte lindo e gente que vai achar horrível. Tem os que vão guardar suas opiniões sobre seu novo visual pra si mesmos e os que vão te dizer exatamente o que acharam mesmo sem você ter perguntado. Muitos dirão o que acharam de seu novo corte na sua frente, outros vão falar mal por trás. Os comentários negativos muitas vezes chega de pessoas que você menos espera e isso te machuca. Só que no nosso caso não é só o cabelo, é nossa aparência inteira que desperta essas reações. E não é só no primeiro dia depois do corte, é a vida toda. Tá vendo como faz sentido ter cuidado com o que se diz?

Eu particularmente acho positivo quando genuinamente na dúvida, algumas pessoas me perguntam se podem me chamar assim ou assado. Acho muito bom quando o ser humano tem coragem de admitir ignorância e demonstra vontade de aprender. Mas eu sou professora, né? Faz parte de minha profissão e eu aproveito mesmo para ensinar. Mas repito: isso sou eu. Não posso garantir que todo mundo fique à vontade com isso. Lembre-se, de que com certeza não será a primeira pessoa para quem esta outra estará respondendo essa pergunta, não se esqueça do exemplo do corte de cabelo.

A melhor coisa a fazer se você não sabe que termo usar pra se referir a alguém de pele escura, é ficar atento e escutar com cuidado e sensibilidade. Preste atenção a como a pessoa se refere a ela mesma. Muitas vezes nós nos concentramos tanto em nossa perspectiva das estórias que acabamos não escutando a estória de ninguém. Esse medo todo de ofender muitas vezes tem menos a ver com a compreensão da situação do outro e mais com a tentativa de evitar o próprio constrangimento. Porque se a questão for simplesmente preservar o outro, e não tivermos certeza se um termo pode ser ofensivo, uma opção bem simples é não usá-lo. Só no dicionário Aurélio existem mais de 400.000 palavras catalogadas, com certeza a gente consegue achar alguns sinônimos para uma palavra quando estivermos achando que o impacto de uma delas pode ser negativo para alguém.

Pra finalizar tem também a nossa mania de defender nossos mau-hábitos com o pé firme e uma certa má vontade de agir pra mudá-los. Já vi muita gente se revoltando quando um termo politicamente correto surge e passa a ser preferido ao invés de um que é limitante ou ofensivo. Muitos acham bobagem, mas não é. Na minha opinião, ser mulatx é muito diferente de ser negrx ou afro-descendente. O primeiro sugere uma consequência anormal de um relacionamento incomum enquanto os outros dois representam fatos, o que se vê, o que se sabe sobre a origem de alguém. O primeiro carrega um julgamento enquanto os outros são neutros. E podem ter certeza que nossos cérebros sabem disso.

Inúmeras pesquisas em linguística já mostraram que a língua influencia nosso pensamento. Sendo assim, reavaliar nosso vocabulário não é uma mera questão de cortesia e muito menos coisa de intelectual que não tem o que fazer e sim um exercício importante de crítica e transformação social. Ninguém merece passar a vida carregando nas costas o peso de ser comparado a um animal, então vamos começar? esqueçamos xs mulatxs para melhor enxergar ox negrxs e afro-descendentes.

P.S. Que tal aproveitar a chance pra dar uma limpada geral no vocabulário e em consequência na mente? Fiquem atentos ao uso de palavras que limitam e esteriotipam as pessoas não só em relação a etnia, como também em relação a gênero, idade, situação social... Isso além de ampliar o seu vocabulário vai ainda ajudar a melhorar o mundo ao seu redor.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Protesto Brasileiro em Hamburgo

Embaladxs pela onda de protesto que está se espalhando pelo Brasil, nós brasileirxs no exterior sentimos a necessidade de participar deste momento. Nossa participação procura não só mostrar nossa solidariedade com nossxs compatriotas, que estão indo às ruas do Brasil mostar sua raiva e desgosto com o que está errado há muito tempo no Brasil, como também divulgar pro resto do mundo os motivos de nossa indgnação.

Brasileirxs no mundo inteiro estão organizando passetas e mostrando nas cidades onde vivem fora do Brasil, porque o país do futebol não está vibrando de alegria com a copa. Ontem foi dia de protesto em Hamburgo na Alemanha. Nossa passeata contou com a presença de mais ou menos 200 pessoas (alguém tem o número exato aí?) vindas de cidades diferentes, carregando cartazes, gritando bem alto pros alemães ouvirem que nem só de samba vive o Brasil.

Acorda Brasil! Hamburgo, Junho 2013 

 Os manifestantes trouxeram cartazes em várias línguas...


A idéia inicial era ficar concentrado em frente à estação de trem mas...

 
...acabou virando uma passeata.
A polícia fez o que a polícia brasileira não está conseguindo fazer: foi seguindo de perto, sem interferir...
    
Muitos cartazes pra chamar bem atenção...
                                                                     
           Alguns bem marcantes...

Patrocinadores oficiais da Copa do Mundo da FIFA no Brasil
 Outros bem indgnados, tentavam lembrar dos mais diversos problemas do Brasil...
Abaixo a corrupcao, violência e desrespeito aos direitos humanos. Viva aos índios brasileiros! seus direitos devem ser respeitados.

...mas são tantos que não cabem em um cartaz só ;-)
A lista de problemas é tao longa que nao cabe em um cartaz!
  
Teve muito bom humor também. Um dos melhores cartazes...
Muda Brasil. A cobra vai fumar?!?! rsrsrs
Na minha opinião um dos melhores momentos: esses guris aí – que nem brasileiros eram – se misturaram na muvuca, improvisaram um cartaz na hora e fizeram questão de serem fotografados pela galera rsrsrs. Figuras...

                                                 O cartaz diz: Precisamos de justica e nao de Copa do Mundo.

Melhores momentos parte II – eu pedi pra fotografar esse rapaz da direita, o que está de óculos, com esse cartaz aí no qual se lê: "Olá Turquia, o Brasil também está nessa". O rapaz ao lado dele vê o cartaz e vai ao delírio: "Eu sou turco, eu sou turco! Me fotografa também!" rsrsrs. Não é só no universo de Glória Perez que a Turquia está colada com o Brasil. Rsrsrs.

Final da manifestação, agradecendo à polícia por ter conduzido a passeata e não nos dar porrada. rsrs

Obrigada aos brasileiros em Hamburgo por organizarem essa ação e a todos nós brasileiros que viemos de outras cidades pra mostrar nossa força.

P.S. Renata F. da Costa, um beijão e muito obrigada por deixar eu usar algumas de suas fotos:-)



segunda-feira, 17 de junho de 2013

Acorda Brasil!

Nunca pensei que esse dia ia chegar, mas parece que chegou. Estou falando do dia em que uma gota d'agua ia fazer transbordar o copo e fazer as pessoas levantarem e irem às ruas exigir mudanças. E olha, o Brasil resolveu acordar na hora certinha.

Me lembro como se fosse hoje o final de 2010 e início de 2011. A Tunísia, o Egito e a Algéria começaram protestos que contagiaram o mundo árabe e em questão de dias, governos foram derrubados e uma nova forma de política começou a dar as caras nesses países. As redes sociais foram fundamentais. Em questão de segundos o mundo podia ver o bicho pegando por lá. O Facebook da galera aqui na Alemanha pipocava com as notícias dos confrontos com a polícia, das pessoas sendo presas por apenas estarem passando por determinados locais e com a crescente indignação, que era como combustível para a ira contida com tudo que estava errado. Enquanto isso, nas linhas do tempo dxs brasileirxs, era que como se nada estivesse acontecendo no mundo. A coisa mais compartilhada na época eram as novas dancinhas de Neymar. Esse tempo todo eu sempre ficava pensando em como é difícil indignar um(a) brasileirx. Minha vergonha chegava a doer, mas ficava na minha, bem quietinha, bem brasileira.

Mas aí um dia abro o Facebook e as notícias começam a aparecer: presidente vaiada na abertura da Copa das Confederações, protesto contra o aumento da passagem de ônibus em São Paulo, repressão da polícia, nossa imprensa esquisofrênica oscilando entre ignorar o couro comendo e fazer declarações ridículas menosprezando o protesto. Para mim é interessante ver como de repente pessoas das mais diversas orientações políticas concordam que chegou a hora de levantar a voz e a hora não poderia ser mais oportuna. De repente os olhos do mundo estão voltados pro Brasil. 

Todo mundo está olhando pra lá querendo saber da copa e vão ter a oportunidade de ver que não são somente nos preparativos pra copa que estamos atrasados. Precisamos correr atrás também da educação e saúde de qualidade, da segurança pública, do sistema penal e carcerário, da igualdade social, racial, sexual e religiosa, da moralidade na política e como se isso tudo já não fosse suficiente, da democracia. Sim, porque de repente fica mais do que claro que não temos direito de protestar. É como se nossa voz só interessasse quando está gritando gol. 

É bom saber que no Brasil as pessoas estão começando a rejeitar o pão e circo e abrindo os olhos de verdade. Não sei se alguma mudança significativa virá em decorrência desse movimento, mas é assim que começa. As redes sociais, mais uma vez, tem sido fundamentais nesse momento. Sem elas ficaria difícil saber de forma objetiva o que está acontecendo, já que a mídia do Brasil é toda comprada e a mídia internacional parece que ainda está meio perdida, sem entender direito o que está acontecendo. Vou colecionar aqui os melhores momentos desse processo brasileiro. Enquanto isso vamos pra rua. Depois eu volto pra contar como foi a passeata em Hamburgo.

Excelente vídeo em inglês, de uma brasileira explicando porque que ela nao prestigiar a Copa do Mundo

 
Achei lindo isso que uma amiga compartilhou no Facebook.Na legenda da foto havia uma lista de tudo que as mainhas podiam fazer de casa pra ajudar os manifestantes. É todo mundo querendo participar de alguma forma:-)

- Blog do Sakamoto: sobre como está errado a polícia bater em qualquer um, seja ele repórter ou cidadão comum.
- Socialista Morena: falando dos motivos reais desse movimento. Não é só por causa de 0,20 centavos.
- Gilber Martins Duarte: em seu blog Socialista Livre, um bom resumo da situação. Como chegamos até aqui.
- Salvador entrando na jogada. 
- Graeme Hodgson: Um olhar de fora e ao mesmo tempo mostrando como trazer a realidade dos protestos para as discussões dentro da sala de aula de EFL (English as a Foreign Language, pra quem não é dessa área:-)).
- Essa declaração de Jerôme Valcke, da FIFA, que sinceramente, estou tentando acreditar que foi piada... Se ele tá se incomodando com nossos protestos ele não tem idéia de como pode ser bem pior na Russia. Tá cutucando o urso com vara curta, só digo isso...

sábado, 8 de junho de 2013

Que linguística é essa?

Recentemente uma pessoa chamou minha atenção pro fato de que a mestre em linguística aqui, não sabe utilizar a crase. Aí eu fui mais além: não é só na crase que eu me embanano toda, não. Não tenho a menor idéia de como usar vírgulas e hífens. O mal é que eu os uso mesmo assim só porque acho divertido me aventurar. Às vezes funciona, outras vezes não.

Meus parágrafos também são escritos seguindo uma regra pouco convencional, a regra do fôlego. Sabe como ela funciona? Vou escrevendo na doida e depois do texto pronto, releio e saio metendo vírgulas, pontos e tudo quanto é tipo de pontuação que me ajude a respirar. Ah, e de vez em quando dou umas escorregadas com a concordância e com a ortografia também...Deveria me envergonhar, né? Oxe, me poupe, claro que não! Escrevo assim porque é assim que eu gosto (escrever pra mim é um passatempo) e isso não diminui em nada meu título. Essa simplesmente não é minha linguística.

A linguística é uma ciência complexa e maravilhosa. Ela tem tantas subdivisões e abordagens que pra quem não faz parte desse universo chega a parecer meio misteriosa. Na época que eu estava concluindo o mestrado, toda vez que alguém perguntava o que eu estava estudando e eu dizia "linguística", a pessoa quase sempre terminava perguntando "quantas línguas você fala". Pra muita gente o linguista é aquele que fala um monte de idiomas. Quem dera...

Nem todx linguísta tem de ser bom escritor também. Até mesmo porque a definição de "bom texto" pode variar de linguista pra linguista. Depende muito de quais aspectos da língua elxs julgam mais fascinantes e com os quais elxs se ocupam mais.Claro que é uma maravilha saber escrever bem, mas isso é um habilidade que muitos tem e outros não e até mesmo xs linguistas se encaixam nessa regra.

Mas afinal de contas de que se ocupa x linguista? Nossa, de tanta coisa... mas nunca de tudo ao mesmo tempo. Alguns/algumas investigam a origem das línguas, como elas se transformam com o tempo e com a regiões geográficas. Outrxs se interessam mais em saber como aprendemos esses idiomas, como falamos, o que entendemos. Há aquelxs que querem descobrir melhores formas de ensinar e aprender esses idiomas. Tem também xs que querem investigar a relação do que dizemos ou escrevemos com nossa realidade e as sociedades nas quais vivemos. Claro que também tem xs que se ocupam das regras, mas o estudo de uma língua não se resume só a isso, né? Vale a pena lembrar...

O que pessoalmente mais me fascina na linguística, é como as línguas são processadas na cognição humana. O que entendemos e porque entendemos certas palavras, frases e situações assim e não assado. Me encanta também a forma como as palavras ajudam a construir nossa realidade. Essa é a minha linguística e ela não me obriga a saber regras de ortografia

As pesquisas da subdivisão da linguística pela qual eu me interesso dão (entre tantas outras coisas) o suporte teórico que outrxs linguistas e muitxs outrxs profissionais precisam pra criar e melhorar as ferramentas maravilhosas sem as quais não podemos mais imaginar nossas vidas. São os nossos dicionários, as ferramentas de busca da internet, o teclado dos nossos celulares e computadores. Alguém aí já se perguntou como é que o Google deduz a palavra seguinte de sua busca quando você ainda nem terminou de digitar? Tudo isso é ciência da cognição humana, uma área na qual a linguística se une a psicologia e por vezes a neurologia pra desvendar os mistérios de como nossa mente funciona. 

Toda vez que entenderem alguma coisa, lá está nosso objeto de pesquisa. Se houver mal-entendido, também. Se se comunicarem com alguém ou alguma máquina (tanto faz se oralmente, por escrito) também. Quando conseguirem evitar uma baita encrenca por reformularem um pensamento escolhendo outras palavras, idem. 

Portanto, aqui vai uma sugestão: da próxima vez que fizerem uma pesquisa na internet, encontrarem um texto que chame sua atenção, resolverem digitar um comentário e ele for lido e processado por outros serem humanos, lembrem de agradecer também a um (a) linguista e por favor, perdoai as nossas crases.
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P.S. A mestra em linguistica aqui adoraria fazer um eletro-encefalograma nas pessoas que se arrepiam com erros de gramatica normativa, pra descobrir em que parte do celebro a ofensa fica resistrada. Como num vai tê como fazê isso online, vou tentar midir o tempo de reacao (e tolerância) das pessoas ao que estiver errado com meu texto. A contagem comeca já!



sexta-feira, 7 de junho de 2013

Carta aberta sobre a “Nega Do Cabelo Duro”

Pegando o bonde do texto anterior, tive de compartilhar essa carta que originalmente apareceu nas Blogueiras Negras


Tania,
A primeira coisa a ser dita é que nada nos preparou para escrever essa carta. Mesmo assim, em nome de mães e pais negros e afrodescendentes, precisamos falar sobre um vídeo de sua responsabilidade postado no youtube. Estou falando de Sofia, Nega do Cabelo Duro, em que uma criança com o rosto pintado de negro interpreta essa famosa marchinha que há muito tempo sabemos ser racista.

Acreditamos que a pequena Sofia seja próxima a você, talvez sua filha, sobrinha. Ela aparece gesticulando e fazendo caretas, contrariada enquanto usa vários pentes. Seu cabelo é apresentado como complicado, “difícil”, “duro”. Enfim, não “desmancha nem na areia”. Somente o maior dos pentes, o amarelo, consegue resolver o “problema”. É o “pente que te penteia”.

Imagino também que você, como muitas pessoas, dirá que foi uma “divertida” e “inocente” “homenagem”. Que o objetivo dessa “brincadeira” não foi ofender mulheres (e meninas) negras e afrodescendentes. Só que foi justamente esse o efeito de seu vídeo, e por isso decidimos escrever, para que o preconceito contra nossa pele e nosso cabelo acabe.

Desde a colonização deste país, a pessoa negra é tratada como uma “raça à parte”, como se não fosse incluída na humanidade, como se nossa aparência não fosse “correta”. Como se o “normal” e desejável fosse ser branco, de cabelos lisos. Como muitas pessoas pensaram assim ao longo dos séculos e ainda pensam, o racismo ainda contamina profundamente a maneira como somos mostrados na televisão, nas revistas e também na internet.

A ideia de que ser branco é ser bonito faz com que milhões de mulheres pretas comprem produtos de alisamento e relaxamento para que seus cabelos percam volume, para que se sintam mais “aceitáveis” dentro de um padrão eurocêntrico racista. Assim como ensinou Sofia, nós também somos ensinadas que nossos cabelos são “ruins”, “difíceis de cuidar”. Que não são bonitos e nem práticos. Isso nos destrói por dentro desde muito cedo.

É assim que a autoestima de crianças, adolescentes e mulheres negras é destruída. É assim que, ao invés amar quem somos e nossas origens, aprendemos a odiar nossos corpos, nossos cabelos. É por isso que muitas de nós tentam se parecer com aquilo que o racismo diz que é correto, que é ser limpo, que é ter uma aparência profissional. É por isso que muitas mães alisam os cabelos de suas filhas tão cedo.

Só que, ao longo dos anos, homens e mulheres pretas vem se unindo para lutar contra o racismo. Trabalhamos o conceito de amor e de manutenção de nossas características individuais, que são lindas. Não somente entre nós, como também em nossos filhos, pois percebemos que é muito importante que o nosso povo não aceite tamanha opressão. Que acredite que a cor da nossa pele e a textura dos nosso cabelos não pode interferir na maneira como as pessoas nos enxergam.

Talvez você não saiba, mas pintar o rosto para fazer imitações de pessoas negras é racismo. É divertido para muita gente, mas não para todo mundo. É um tipo de humor que tem aparecido com muita frequência na televisão, infelizmente. Um dos maiores exemplo disso é a Dona Adelaide do Zorra Total. O nome desse tipo de piada em português é Cara preta (Black Face). Aqui você pode ler um ótimo artigo sobre o assunto, explicando com detalhes porque são terríveis.

É o tipo de piada que faz as pessoas pensarem que nós, negros, não somos bonitos, educados e honestos. Que nós, mulheres negras, não temos dentes, que nossos cabelos são feios. É o tipo de piada que ensina às crianças que pessoas negras são fedidas, feias, desagradáveis. Que não é muito bom ter amigos negros. Infelzimente, é quase sempre assim que nós, mulheres negras, aparecemos na televisão.

São essas pequenas grandes piadas que fazem com que as pessoas se esqueçam que nós somos humanos tanto quanto pessoas brancas. E quando as pessoas se esquecem que nós somos humanos, elas se acostumam com o racismo. O racismo, por sua vez, faz com que as pessoas achem normal que nossos jovens morram cedo, que nossas crianças não tenham educação de boa qualidade.

Precisamos dizer com toda sinceridade que estamos acostumadas com esse tipo de piada. Mas seu vídeo é o único que vi até hoje onde uma criança, que provavelmente não tem a menor ideia do que tudo isso significa, faz esse tipo de coisa. Por causa disso, não somos apenas nós, mulheres adultas, que somos motivo de riso. São nossas crianças, nossas filhas.

Falaremos em nome de todas as mães negras e afrodescendentes cujas filhas, infelizmente, serão chamadas de negas do cabelo duro várias vezes ao longo da vida. Certamente um “elogio” que nenhuma mãe gostaria de ouvir. Nós podemos, como mães e pais, combater esse racismo. Mas você também pode Tania, ensinando que esse tipo de brincadeira nunca deveria ser repetida.

Não conseguimos entender até agora que mensagem você tentou passar pra Sofia. Afinal de contas, está claro que a pequena é branca apenas pros padrões brasileiros, porque todo brasileiro se acha MUITO branco, né? Mas na verdade, sabemos que o motivo de seu cabelo ser cacheado é justamente o sangue africano correndo em suas veias, o que faz com que ela seja afrodescendente.

Sinceramente? Seu vídeo é de extremo mau gosto. Estimula crianças a desrespeitarem quem são. Afinal, por que ensinar uma criança a pintar seu rosto de preto, que “cabelo duro” é “coisa de preto”? Por que ensinar uma criança a ser racista? Por que não ensinar que todos os seres humanos nascem diferentes e que justamente por isso somos maravilhosos? Que devemos amar e respeitar quem é diferente de nós, por que é assim que seremos respeitados?

Estamos numa era de transformação, na qual todos os seres humanos se encaixam e devem ser respeitados. Uma época em que todos devemos nos amar como somos, com o cabelo que temos. Ensinar o contrário põe a perder o trabalho de séculos de luta para que seja quebrado de uma vez por todas este estigma de que pessoas negras são “feias”, tem o cabelo “duro”.

Pedimos, por favor, que repense sua atitude com relação a toda a população preta, mas principalmente com uma criança “branca” que está em formação. O racismo, desde o início dos tempos, é coisa ensinada e assim segue seu fluxo. Crianças aprendem em casa e reproduzem na escola o ódio ao preto, traduzido em “brincadeira de criança” para quem pratica, mas uma quebra da autoestima pra quem sofre.

Hoje, Sofia é apenas uma criança, mas um dia vai crescer e entender. Espero que até lá esse episódio triste seja superado. Que ela tenha a oportunidade de viver num Brasil sem racismo e preconceitos de todo o tipo. É o que desejamos para ela, de coração. Porque assim, desejamos para nós mesmas e para todas as nossas crianças negras e afrodescendentes. Agora e no futuro.
 

domingo, 2 de junho de 2013

Lidando com o racismo

"Como você lida com o racismo lá?" Essa era a pergunta que eu mais tive de responder ao voltar ao Brasil depois de meu primeiro ano de Alemanha. A minha resposta, que na época surpreendia à todos – inclusive a mim mesma, era sempre :"Nunca tive de lidar com racismo lá". Deixa eu explicar direito o porque de minha surpresa e de minha resposta.



Há onze anos eu tinha acabado de terminar a faculdade e queria ter uma experiência no exterior antes de cair de cabeça no mercado de trabalho e de ter de me assumir adulta de uma vez por todas. Como professora de inglês, minha primeira escolha tinha sido a Inglaterra, mas como as coisas graças a Deus nem sempre saem do jeito que a gente planeja, eu acabei conhecendo uma pessoa maravilhosa, que é a tampa de meu balaio, com quem eu decidi dividir minha vida. E ele morava na Alemanha. Resolvi fazer uma pequena adaptação nos meus planos e mudei o destino de minha minha viagem.



O amor enche a gente de coragem pra fazer meio mundo de maluquice, mas no fundo, na época eu estava morrendo de medo do que iria encontrar aqui. É que naquele tempo eu não sabia quase nada sobre a Alemanha e o que sabia vinha de livros de história, ou seja, um passado macabro e sangrento. Quando não era isso era uma notícia aqui outra ali, no geral bem limitadinhas e estereotipadas do tipo Oktoberfest e neonazistas. Claro que eu tive medo e claro que estava tensa a respeito do que me esperava.



Quando cheguei, o que me impressionou foi perceber o quanto a imagem que se vende deste país é equivocada. Aqui tem sim Oktoberfest e neonazistas.Tem uma série de outros problemas e preconceitos também contra a mulher e contra estrangeiros, além de ainda terem dificuldade em lidar com todas as questões que a multiculturalidade traz consigo. A diferença é que os limitados e racistas daqui se escondem muito bem, e quando se mostram, são muito bem punidos. 



A sociedade debate constantemente sobre a intolerância e a mídia não dá trégua sobre esse tema. As pessoas no geral são cuidadosas com essas questões, são cautelosas nas escolhas das palavras quando não tem certeza se certo termo pode ser ofensivo e pedem desculpas imediatamente quando, sem querer, ofendem. Eu já passei por várias situações em que a pessoa com quem eu estava falando dizia alguma coisa sobre o cabelo ou cor da pele de alguém e logo em seguida me falava "Desculpa que eu falei assim, não sei se isso ofende. Como é o certo?" Eu sempre me emociono em situações como essas porque nelas eu vejo seres humano, que apesar de não sofrerem a mesma dor do outro, mostram empatia, humildade e vontade de mudar para o bem estar geral.



Teve uma vez que eu estava em um trem e um outro passageiro estava muito incomodado com minha presença. Não estava entendendo bem qual era o problema dele comigo até que ele fez um comentário racista se referindo a mim. Me levantei com a intenção de dizer umas poucas e boas a ele, mas antes de poder abrir minha boca, TODOS os passageiros do vagão (umas 15 pessoas ) se revoltaram e tomaram a frente, discutindo com ele de uma forma que me surpreendeu. A estória terminou com uma mulher que exigia que ele se desculpasse comigo e como ele se recusou os passageiros chamaram a polícia. 



Quem me conhece sabe que eu choro por tudo e claro que chorei no meio daquele fuzuê. Os passageiros me consolavam achando que minhas lágrimas eram por ter sido vítima de racismo. Mal sabiam eles que eram lágrimas de emoção por causa da reação deles. Foi um sentimento muito especial me ver sendo defendida e amparada por um grupo de pessoas desconhecidas. Fiquei pensando que todas elas eram muito diferentes, mas que uma coisa tinham em comum, que era o senso de justiça e a certeza de que um problema social é um problema de cada um deles. Cada um resolveu por si só levantar a voz e no final das contas eles formavam um grupo que se indignava com o comportamento racista do homem que me ofendeu. Vários passageiros me pediram desculpas depois da confusão. Um senhor me disse "Não deixe esse idiota interferir no que você veio fazer aqui, não. Aqui tem muita coisa boa." Essa atitude com certeza é uma delas.



Não são somente as pessoas à caminho do trabalho nos transportes públicos, que se preocupam em mudar a percepção de alguns de que a Alemanha é um país injusto. O governo daqui também investe constantemente em medidas sócio-educativas e reparadoras. Aqui existe cota pra mulher, estrangeiros, portadores de deficiência. Tem benefício pra quem tem filho na escola, pra quem é estudante universitário, pra ajudar a pagar o aluguel, pra ajudar a pagar atividades culturais e educativas se a família tem filho, pra comprar livros, pra comprar remédios e por aí vai. Judeus tem direito de imigrar pra cá sem a burocracia que pessoas de outras confissões enfrentam. A sociedade entende que isso tudo é normal. É raro ver alguém questionando essas medidas. Mesmo os alemães medianos parecem entender que se houve um erro histórico, uma retratação é inevitável. Se existe discrepância social, todo mundo sai perdendo então é melhor ter menos pra ter mais, dividir pra que ninguém deixe de ter. Infelizmente, eu percebo que as coisas andam piorando aqui também, mas o povo questiona tudo sem parar e isso atrasa as mudanças negativas, o que é bom.



Aí eu fico pensando no Brasil e de como a gente se orgulha de dizer que somos o país mais tolerante do mundo. A gente se interessa em saber como é a questão do racismo em outras partes do mundo e adora ficar repetindo essa de que somos um povo que não sabe o que é racismo porque é todo mundo misturado. Pra muita gente no Brasil, ativista de movimento negro é paranóico e ações afirmativas são racismo às avesas. Tem um monte de gente que fala como se tivessem sido pessoalmente ofendidas com toda e qualquer iniciativa que busca melhorar a situação social de um grupo que não goza dos mesmo benefícios que o resto da sociedade. 



Me choca o fato de que em Salvador, cidade onde eu nasci, apesar de mais de cinquenta por cento da população ser negra, ainda é possível ser a única negra no restaurante, na aula de ballet, na sala de espera de consultório chique, na sala dos professores da escola particular. Fico especialmente triste quando eu percebo que muita gente passa a vida inteira sem nem se dar conta dessas coisas, achando super normal que outros tenham a vida mais difícil que a sua baseado em um detalhe que não se pode escolher, como gênero, cor da pele, origem. Infelizmente, em nosso país tem gente que acha que quem sofre discriminação deve sofrer calado, sem questionar nada, sem exigir mudanças. Deixa quieto que assim tá bom. Pra alguns.



Hoje em dia quando volto ao Brasil e alguém me pergunta como lido com o racismo aqui, minha resposta passou a ser "muito melhor do que eu lido com ele no Brasil". Aqui se entende que discutir e questionar os preconceitos é trocar idéias e evoluir, já em meu país quem é engajado em alguma causa tem sempre de primeiro explicar que não é nem paranóico nem radical. É triste, mas na verdade sabem como é que eu lido mesmo com o racismo aqui? Guardando minhas forças pra enfrentar ele quando chego em meu país.